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quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Os nossos simpáticos Golfinhos 


Em meados do século passado os tripulantes dos muitos barcos de pesca e de carga que demandavam ou tinham como porto de abrigo a foz do Sado serviam-se das suas águas como vazadouro para tudo o que estivesse a mais a bordo das suas embarcações.


E era graças a essas nefastas práticas que muitos pescadores sadinos, envergando as suas pesadas “botas de água” várias vezes escorregaram nas muralhas da altamente poluída doca, devido aos cabos de amarração estarem completamente oleados e a muralha por demais escorregadia.

“Uma porcaria!” É a expressão usada por um velho pescador ao relembrar esses tempos.

A juntar à falta de legislação, fiscalização e consciência ecológica contribuíam ainda a indústria conserveira, com os seus óleos e sangue do peixe que escorria livremente pelos esgotos até ao Sado.

Nessa altura os arrastões eram inexistentes. A costa era também rica em plâncton, pelo que a sardinha abundava e mesmo com todo este tipo de poluição, mais junto à margem norte do Sado, o rio era farto de espécies piscícolas e a colónia de roazes corvineiros era numerosa.

A partir dos anos 60 do século XX, diferente tipo de indústrias se instalaram a nascente da baía sadina e com elas chegou outro tipo de poluição que sem o devido controlo acabou por deixar marcas profundas de que é um bom exemplo as famosas ostras do Sado que quase desapareceram.

Com menos alimento também a colónia de roazes se foi reduzindo até que nos finais do século passado, início do século XXI, vamos encontrar a poluição muito mais controlada, não só por adequada legislação, por maior consciência ambiental e pelos filtros e centrais de tratamento de águas e resíduos, entretanto instaladas e colocadas a funcionar.

Com estas boas práticas ambientais as águas do Sado voltaram a ser quase transparentes. Aqui têm o seu habitat uma quase única colónia de roazes, os nossos simpáticos golfinhos, que nadam, caçam e se reproduzem e são alvo de admiração da população setubalense. 

Rui Canas Gaspar
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segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

 



Maria, peixe pra já!

Naquele tempo, em meados do século passado, eram muitas as fábricas de conserva de peixe que laboravam um pouco por toda a cidade de Setúbal.

A pesca era abundante e os barcos faziam fila para vender o pescado, sobretudo sardinha, destinado à dinâmica indústria conserveira.

Logo que o fabricante comprava o peixe na lota a fábrica fazia soar a sua estridente sirene e identificada pelo diferente som as operárias saiam de casa correndo na direção da mesma afim de ocuparem o seu posto de trabalho, fosse a que horas fosse, de manhã, de tarde, ou mesmo de noite.

Mas, para reforçar o sonoro aviso algumas fábricas ainda mandavam um “moço”, normalmente vestido de calça curta e camisa de ganga de cor azul, montado numa bicicleta (pasteleira) passar pela casa de cada uma das operárias afim de chamá-las ao serviço, gritando na rua, “Maria, peixe pra já!”.

E, as Marias, largavam tudo o que estavam a fazer, agarravam no avental, na toca e na tesoura, enfiavam os chinelos nos pés e corriam rua afora deixando tudo para trás de forma a chegar ao local de trabalho atempadamente, não fossem atrasar-se e a mestra já não as deixar entrar perdendo assim a oportunidade de trazer alguns magros centavos para casa.

E quantas crianças, ainda bebés, não foram mamando pelo caminho e já na fábrica ficariam a dormir no interior de alguma caixa de madeira, servindo de berço, enquanto a sua esforçada mãe trabalhava para prover o seu sustento?

Eram tempos difíceis aqueles que tantos e tantos homens e mulheres da nossa terra vivenciaram e ainda hoje perduram na memória de muitos setubalenses.

Rui Canas Gaspar

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sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

 



Faz hoje 60 anos o dia em que quase ficamos soterrados

Naquela madrugada de 15 de dezembro de 1963 a vizinhança do predio com os números 51, 53 e 55, na Rua das Oliveiras, no popular Bairro de Troino,  acordou sobressaltada com o enorme estrondo produzido nas traseiras do edifício.

Terra, entulho e enormes pedregulhos vindos do alto caíram nos pequenos quintais , bloqueando portas e assustando os moradores com a inusitada e perigosa situação.

Parte da muralha na zona do Baluarte de Santo Amaro, ali junto ao Viso,  mandada construir por D. Joao IV e com obras concluídas no distante ano de 1696 sucumbiriam aos terrenos encharcados pelas chuvas outonais.

Felizmente não houve feridos, apenas prejuízos materiais. Os  bombeiros chamados ao local mandaram de imediato evacuar o prédio, uma medida acertada, porquanto poucas horas depois enormes pedras da muralha voltaram a cair e desta vez se estivesse alguém nas casas não teriam tanta sorte como no inicio do desabamento.

O Governo Civil de Setubal cedeu de imediato uma zona do antigo Converto de S. Francisco, então parcialmente ocupado por equipamentos do antigo Regimento de Infantaria 11 onde os moradores ficaram alojados provisoriamente ate conseguirem arranjar novas habitações pelos seus próprios meios.

Um dos jovens deslocados, o Mario Salgado, então eletricista, tratou de colocar as primeiras lâmpadas eletricas que iluminaram um pouco da escuridão daquele enorme espaco. E foi precisamente este Amigo que hoje fez questão de me lembrar aquele dia em que ambos, ele no r/c esquerdo e eu no direito, quase ficamos soterrados em vida.

Rui Canas Gaspar

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sábado, 25 de novembro de 2023

 

Lembrança do nosso outeiro 


Descalços, de botas cardadas ou de botas de água a que hoje chamamos galochas, os rapazes de Troino, de calções vestidos, subiam ao outeiro e dali lançavam os seus papagaios de papel, naqueles tempos em que com o aproximar do mês de dezembro já se faziam sentir fortes vendavais.

Os papagaios eram construídos pelos próprios rapazes, recorrendo a canas verdes para fazer a armação e a papel de jornal para o revestimento, alguns que conseguiam arranjar alguns trocos compravam papel colorido na papelaria do Largo da Fonte Nova dando assim uma visão mais agradável ao seu papagaio.

E, porque não havia dinheiro para luxos, o papel era colado recorrendo ao sabão preto ou a cola feita pelos próprios moços, recorrendo aos caroços de marmelo.

O grande rolo de fio para prender o “bicharoco” era aquele utilizado pelos pescadores que generosamente doavam aos rapazes.

Em dias ventosos era uma alegria naquele outeiro, por cima da Fonte da Charoca, aquela construída em nicho na Rua das Oliveiras, ver os papagaios voando lá no alto, tentando cada um superar o outro na altura a que chegavam, esvoaçando sobre os telhados do casario daquele antigo e popular bairro, dominado pela torre da Igreja de Nossa Senhora da Anunciada, onde se radicaram os pescadores oriundos das quentes terras algarvias.

Voltei hoje ao alto do outeiro para apreciar a mesma panorâmica que os rapazes da minha geração tanto gostavam e que foi lugar de muitas e salutares brincadeiras, num tempo sem facilidades, mas de grandes e fortes amizades que ultrapassando a voracidade dos tempos ainda hoje perduram

Rui Canas Gaspar

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quarta-feira, 15 de novembro de 2023

 


 

Zé da Mota quando rapaz foi conhecido por Zé dos Quadradinhos

 

José Eduardo Martins, um industrioso setubalense que muito contribuiu para o desenvolvimento desta nossa cidade, ficou conhecido entre os seus conterrâneos por Zé da Mota. O que se calhar poucos sabem é que este invulgar personagem teve como primeira alcunha “Zé dos Quadradinhos”

 

Quando era rapaz o gosto pelo cinema ocupava-lhe boa parte do tempo. O primeiro filme que assistiu foi projetado num cinema improvisado no “Lago” (atual Largo José Afonso) onde então já se realizava a Feira de Santiago.

 

A partir de então começou a ir assistir aos filmes passados nos cinemas Salão ou Casino.

 

Foi nessa altura que lhe atribuíram a alcunha de “Zé dos Quadradinhos”. A razão da alcunha prendia-se com o facto dos constantes esquemas que lhe vinham à mente, não só para entrar todos os dias no cinema sem pagar bilhete, oferecendo-se para ir à estação dos caminhos de ferro levantar as bobines dos filmes do dia com o seu carrinho de mão.

 

Ora como durante a projeção do filme era comum as peliculas se partirem o operador do projetor tinha de cortar de 10 a 20 centímetros de cada lado da fita partida antes de a colar com acetona para dar continuidade ao filme.

 

As sobras de dez centímetros davam 20 quadradinhos de fita com as figuras em cena e o rapaz combinado com o operador vendia ou trocava esses quadradinhos, ou fitas como então eram conhecidos, desde 10 a 50 centavos conforme a proximidade da figura do Tio Mackhoi ou outras estrelas de cinema desse tempo. Essas fitas eram vendidas aos colecionadores ou trocadas, como hoje se faz com os cromos.

 

Rui Canas Gaspar

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sábado, 14 de outubro de 2023

 


A antiga casa da Quinta do Quadrado


Quando começou a ser elaborado o plano do Parque Urbano da Varzea subsistiam três antigas casas das quintas que por ali haviam e que era suposto serem utilizadas como estruturas de apoio à nova zona verde.

As instalações da Quinta 
do Paraízo, junto aos campos de jogos, sofreram um incêndio e ficaram praticamente só com as paredes exteriores de pé. A casa da Quinta da Azeda (junto ao mirante) foi igualmente alvo de incêndio e poucos dias depois era completamente demolida. Das três chegou até aos nossos dias a casa da Quinta do Quadrado.

Aquando da apresentação do plano geral do novo parque, no Forum Municipal Luisa Todi,  a então presidente da Câmara Municipal, Maria das Dores Meira, disse que aquela casa seria utilizada no apoio ao parque servindo até como casa dos caseiros (guardas).

Para dar melhor apresentação às instalações as mesmas foram mandadas pintar exteriormente e a casinha da quinta ficou bem mais bonitinha e com boa apresentação.

Presentemente, e para nosso espanto, verificamos que a mesma se encontra de portas e janelas escancaradas com degradação acentuada e não será de admirar que um destes dias não tenhamos a notícia de que seguiu o mesmo destino das duas outras.

Por tudo isto seria avisado que a autarquia procedesse no mais curto espaço de tempo à limpeza e emparedamento das instalações se é que queremos que a antiga casa da Quinta do Quadrado fique no parque a representar as antigas habitações dos nossos antepassados.

Rui Canas Gaspar

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domingo, 20 de agosto de 2023

 



A palavra convence mas o exemplo arrasta

Naquele tempo a vida em Setúbal era bem difícil, os pescadores trabalhavam muito e ganhavam pouco e os vendavais eram mais fortes  pondo frequentemente  em risco as suas vidas.

A devoção dos homens do mar ao Senhor Jesus do Bonfim materializava-se por vezes com a oferta das mais diferentes dádivas em função da graça recebida. Naquele tempo podia-se observar muitos quadros de arte naif bem como pequenas replicas de barcos de pesca expostos numa das salas daquela vetusta capela.

Esta devoção acabaria por atravessar o Atlântico e rumar à Bahia onde muitos brasileiros tem um carinho muito especial pelo Senhor Jesus do Bonfim, graças a idêntica  imagem levada de Setúbal para aquelas terras .

Era tarde de domingo, Francisco e Benilde levando pela mão o seu pequeno filho, vindos de Troino, atravessaram o amplo parque verde e dirigiram-se à capela. Entraram reverentemente e a mãe levando pela mão o menino subiu por uma  escada então existente nas traseiras do altar de forma a chegar à base da imagem de Jesus crucificado. Nesse local havia uma caixa de esmolas, onde a senhora entregou ao filho uma moeda de prata para este depositar naquela caixa.

O casal vinha agradecer e mostrar gratidão pelo facto de naquela quinzena o pescador ter sido abençoado com invulgar pescaria e como ganhou mais entendeu por bem também distribuir por intermédio da Igreja.

Provavelmente Francisco e Benilde partiram desta vida e nunca pensaram que um gesto tão simples viria a marcar para sempre a maneira de ser e de estar de seu filho.

Por vezes os gestos mais simples encerram grandes ensinamentos que a voragem dos tempos não consegue fazer esquecer, daí que ainda hoje me lembro desta passagem de vida, tendo para mim que a palavra convence mas o exemplo arrasta.

Rui Canas Gaspar

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quinta-feira, 13 de julho de 2023

 


Um dos últimos artesãos setubalenses


Longe vão os tempos em que por Setúbal abundavam
os artesãos, pessoas bem talentosas que construíam pequenas réplicas de barcos, normalmente de pesca, geralmente destinados aos filhos que com eles brincavam nas poças de água que proliferavam pela cidade nos dias invernosos. Algumas destas peças foram até oferecidos à igreja do Senhor Jesus do Bonfim como reconhecimento por alguma graça recebida.

Presentemente os artesãos setubalenses são poucos e seguramente com tendência para acabar. De entre eles, fomos encontrar Joaquim Peixoto, prestes a completar 70 anos, nascido e criado em Setúbal que constrói pequenas réplicas de barcos de pesca, nomeadamente das antigas canoas de Setúbal ou dos moliceiros aveirenses.

O simpático e bom conversador artesão aproveita o tempo de Verão para expor e comercializar algumas das suas obras na Praça de Bocage, porém os tempos para os portugueses não vão de feição, como o vento que enfuna as velas dos seus barcos e, em cada seis vendas cinco são feitas para estrangeiros.

Assim, os coloridos e bem elaborados barcos construídos em Setúbal estão já em casas de americanos, franceses, brasileiros e até israelitas de entre outros.

Curiosamente, foi precisamente uma cidadã do estado de Israel que adquiriu um bonito moliceiro e, como estaria por Setúbal durante alguns dias pediu que o artesão colocasse no barco o nome de Samuel e desenhasse o símbolo do seu país, a estrela de David, pagando o valor pedido pela peça e gratificando generosamente Joaquim pela sua simpatia.

Vale a pena conhecer este artesão e, se ama as coisas do mar, pode sempre adquirir, enquanto ainda tem tempo, alguma bela peça produzida artesanalmente em terras sadinas.

Rui Canas Gaspar

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domingo, 18 de junho de 2023

 



O inconfundível perfume de Mário Ledo

Naqueles tempos difíceis, no início dos anos 50 do passado século XX, a juntar à miséria que se vivia em boa parte da cidade de Setúbal, Mariana adicionava ainda o facto de sua mãe ser cega e, como tal, apenas com os seus tenros 13 anos ter de iniciar a sua vida laboral na indústria conserveira.

Era ali no “lago” (Largo José Afonso) que funcionava a Fábrica de Conservas Unitas, propriedade do carismático Mário Ledo e, foi nessa unidade fabril, que a menina começou a trabalhar. Porém foi sol de pouca dura!...

No final do primeiro dia de trabalho o patrão estava a coloca-la fora da fábrica dado que então só era permitido começar a trabalhar com 14 anos e a jovem ainda estava com os 13. Mário Ledo fora enganado!

À menina valeu-lhe a mestra que foi interceder junto do patrão que teve em consideração o facto de Mariana ser parte importante da ajuda financeira da pobre família residente numa casa abarracada no Viso e, como tal, decidiu abrir exceção.

Mariana recorda o seu primeiro patrão como um homem de trato algo rude, porém de bom coração e sobretudo um homem que se fazia anunciar ainda antes de entrar na fábrica. É que Mário Ledo usava um tipo de perfume de tal forma intenso que mal chegava à porta da fábrica era motivo para que se passasse de imediato a palavra sobre a sua eminente entrada.

Os anos passaram, Mariana foi conhecendo e trabalhando em várias fábricas de conservas de peixe das muitas que laboravam na nossa terra, porém por muito que procurasse ao longo dos anos o que nunca mais veio a encontrar foi o tal perfume que Mário Ledo usava e que deve ter ficado na memória de muitas das operárias que saíam da sua fábrica com outro cheiro mais desagradável e que eram alvo da rapaziada que lhes mandavam “piropos” bem menos agradáveis.

Volvidos mais de sessenta anos sobre a sua entrada no mundo laboral, esta setubalense fez-se retratar no Bairro dos Pescadores, junto ao marco que assinala a indústria conserveira setubalense.

Rui Canas Gaspar

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quinta-feira, 25 de maio de 2023

 


Tempos de fartura de peixe em Setúbal


Contavam os antigos pescadores por altura dos anos 50 do passado século XX que o principal motivo para o desaparecimento da fartura de sardinha, aqui na nossa costa, prendia-se com a degradação dos fundos marinhos originada pelos arrastões.

Anos mais tarde uma nova “epidemia” se abateria sobre os homens do mar, que sem saberem como começaram a capturar toneladas de “apara lápis” (pequeno peixe com bico comprido) sem grande valor comercial, fazendo praticamente desaparecer a sardinha que até então capturavam.

Com a falta de matéria prima, as dezenas de fábricas de conserva começaram a fechar, os barcos deixaram de ser rentáveis para os armadores e a profissão de pescador tal como a das conserveiras em poucos anos praticamente ficou extinta.

Resta-nos imagens como esta legada pelo grande Américo Ribeiro, neste caso mostrando-nos dezenas de barcos carregados de peixe e grande azáfama junto à doca dos pescadores.

Rui Canas Gaspar

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domingo, 7 de maio de 2023

 



O Sr. Elias e a Ti Laura referências de Troino 


Foi a propósito de um post sobre os deliciosos bolos que a Ti Laura confecionava e vendia à porta do antigo Grande Salão Recreio do Povo, popularmente conhecido entre os antigos setubalenses simplesmente por “salão”, que dei comigo a pensar no local onde eram cozidas aquelas delícias, que passados tantos anos ainda não saíram da memória de muitos setubalenses.

O forno a lenha alimentado por grandes ramagens de pinheiro seco, era uma construção de alvenaria em forma de abóboda que ficava mesmo em frente da casa da Ti Laura, na Rua Jacob Queimado, na padaria do Sr. Elias, padaria que tinha portas de entrada na Rua do Queimado (como assim era designada pelo pessoal do bairro de Troino) e Paulino de Oliveira.

Era também nesse seu forno, antes do mesmo arrefecer depois de cozido o pão,  que o simpático e solicito proprietário deixava a vizinhança assar umas batatinhas doces ou mesmo torrar alguma farinha de trigo destinada a alimentação dos mais pequenos troineiros, como acontecia lá em casa.

Guardo ainda na memória que era na padaria do Sr. Elias que também se confecionava e comercializava o delicioso “pão espanhol”, mais branco, mais fino, de sabor mais agradável, embora provavelmente não tão bom para a saúde como seria aquele outro conhecido por “pão escuro”.

Quer a Ti Laura, quer o Sr. Elias há muito que nos deixaram, mas a sua memória ainda hoje perdura, volvidos tantos anos, na mente e no coração de tantos e tantos troineiros que com estas personagens tiveram a oportunidade de se cruzar na estrada da vida.

Rui Canas Gaspar

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domingo, 19 de fevereiro de 2023

 

Bem dizia frei Tomás, faz o que ele diz mas não faças o que ele faz

No dia 15 de dezembro de 1963, alguns moradores acordam sobressaltados, com as primeiras grandes pedras de parte das antigas muralhas que protegiam a cidade de Setúbal, a desabar sobre o prédio onde residiam, na Rua das Oliveiras, no bairro de Troino.

Felizmente a ocorrência não causou vítimas embora algumas habitações ficassem sem condições de habitabilidade. Os bombeiros chamados a socorrer os moradores mandaram evacuar de imediato o edifício, temendo novo e maior desmoronamento da muralha, o que de facto veio a suceder nas horas subsequentes.

O Governo Civil de Setúbal apressou-se a socorrer os moradores, facilitando o alojamento das famílias afetadas por esta ocorrência. Cedeu então, temporariamente, uma ala do primeiro andar do velho convento de São Francisco até que as mesmas conseguissem com os seus próprios meios arrendar novas casas.

O convento encontrava-se nessa altura a servir de instalações de apoio ao Regimento de Infantaria 11 que o utilizava, sobretudo como paiol e depósito de armamento.

Neste ano de 1963 ainda ali podiam ser vistos alguns cavalos do exército. Constatava-se também a existência, nas cavalariças, de algumas antigas galeras de transporte, bem como diversos apetrechos hípicos usados pelos militares.

As famílias desalojadas ainda estiveram naquelas instalações, do então Ministério do Exército, por um período de cerca de dois anos até que com os seus próprios meios encontraram novas habitações, no vizinho bairro de Troino de onde eram oriundas.

Uma década mais tarde, em 1975, o velho convento, que entretanto tinha sido abandonado pelos militares, viria a ser de novo ocupado por civis, quando chegaram a Portugal centenas de milhares de pessoas retornadas do Ultramar, especialmente de Angola, fugidas à guerra civil que deflagrou imediatamente após a descolonização.

A ocupação das instalações manteve-se por mais de vinte anos e a comunidade composta por 170 pessoas que ali habitou tornou-se bastante fechada, até que, em 18 de outubro de 1996, o primeiro-ministro António Guterres, assinou um protocolo, no âmbito do Programa Especial de Realojamento nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto, para o realojamento das 61 famílias, que ali viviam miseravelmente.

De então para cá pouco ou nada se fez pelo aproveitamento das vetustas instalações, onde depois de reconvertidas poderiam transformar-se numas dezenas de apartamentos.

Quando agora se anuncia que o Estado se prepara para legislar no sentido de dar aproveitamento a casas particulares desocupadas a questão que se põe é porque é que os nossos governantes não começam por dar o exemplo e recuperar para colocar no mercado de arrendamento as suas próprias casas devolutas de que é exemplo em Setúbal o antigo convento de São Francisco bem como a meia dúzia de blocos entretanto construídos e desocupados e onde se gastou milhões de euros?

Bem dizia Frei Tomás, faz o que ele diz mas não faças o que ele faz.

Rui Canas Gaspar

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quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

 


No Rio Sado até laranjas se “pescavam” 


Acontecia que até por volta dos anos 60 do passado século XX, os dias de vendaval se já por si eram maus, por outro lado representavam uma janela de oportunidade para alguns. É que o vento soprando forte fazia cair das muitas laranjeiras da várzea os seus deliciosos frutos que acabavam por ser arrastados para a Ribeira do Livramento pelas águas das chuvas que buscavam o caminho do Sado.

Alguns homens do mar, sobretudo os mais jovens, dedicavam-se então, nesses dias de mau tempo, à “pesca” não de peixes no seu rio azul ou na costa oceânica, mas sim das famosas laranjas de Setúbal ali mesmo no rio, junto à muralha.

O ribeiro, que a partir da zona do Bonfim se encontra encanado, vem desaguar ao Rio Sado, quase junto à Doca do Clube Naval Setubalense e era aí que, encharcados até aos ossos, alguns pobres setubalenses, de xalavar na mão, tentavam apanhar os frutos que ali chegavam arrastados, em grande quantidade, pela forte corrente.

As sacas de sarapilheira ficavam então, em pouco tempo, cheias de laranjas e logo eram colocadas às costas daqueles fortes homens que descalços e curvados sob o peso da carga, lá iam rua fora anunciando ruidosamente seu valioso e fresco produto.

Rui Canas Gaspar


sábado, 29 de outubro de 2022

 Gosto de observar, de trabalhar, de ler e até de escrever, de entre outras coisas, tendo publicado o primeiro texto no Jornal O SETUBALENSE naquele distante dia 25 de setembro de 1967, um artigo de opinião com o título "Setúbal tem campistas mas não pode fazer campismo".

Porque esta semana estive na gráfica para preparar o mais recente trabalho para impressão e porque iniciei com ele um novo ciclo de ISBN fui fazer um apanhado aos trabalhos já editados ficando surpreendido com o facto de desde 2011 ter editado trabalhos literários todos os anos, conforme lista anexa.
LIVROS EDITADOS
- Portugal – O Farol da Europa 978-989-97315-0-9 (maio 2011)
- África Mórmon 978-989-97315-1-6 (outubro 2011)
- Aventuras de Escuteiro – Contadas por quem as viveu 978-989-97315-2-3 (dezembro 2011)
- Arrábida Desconhecida 978-989-97315-3-0 (junho 2012)
- Barco EVORA – O Velho Senhor do Tejo 978-989-97315-4-7 (dezembro 2012)
- Movidos Pela Fé 978-989-97315-6-1 (dezembro 2013)
- Setúbal – Gente do Rio Homens do Mar 978-989-99046-0-6 (setembro 2014)
- Histórias Coisas e Gentes de Setúbal 978-989-99046-1-3 (outubro 2015)
- Mistérios da Arrábida 978-989-97315-5-4 (junho 2016)
- TROIA – Um Tesouro por Descobrir 978-989-99046-2-0 (novembro 2016)
- SADO 978-989-99046-3-7 (junho 2017)
- A ÚLTIMA FRONTEIRA – Várzea de Setúbal 978-989-99046-4-4 (março 2018)
- Ajudamos a Desenvolver Setúbal 978-989-99046-6-8 (dezembro 2019)
- Palácio Feu Guião – A Fénix Renascida 978-989-53839-0-0 (Novembro 2022)
Coautoria
- Templo Portugal (Janeiro 2020) -Rui Canas Gaspar, António Paramés, José Sá Barros-
Biografias
- Francisco Finura (Outubro 2014)
Monografias
- Preparemo-nos para a Ação ( Outubro 2021)

 Setúbal na História ou histórias de Setúbal ( 244)

Conhecendo um pouco do impulsionador do Convento de Brancanes
O Verão começara há apenas quatro dias e, naquele 25 de junho de 1631 uma senhora de origem irlandesa, esposa de fidalgo e juiz português, transpirava profusamente na sua confortável casa da Vidigueira. Poucos minutos depois, ela estaria a dar à luz uma criança do sexo masculino.
Para que a criança fosse conhecida e diferenciada entre as demais foi-lhe colocado o nome de António da Fonseca Soares. Ela cresceu naquela terra de gente do campo sendo alvo de todos os cuidados próprios da sua condição social.
O rapaz desenvolveu-se, correndo livremente pelos campos e brincando naquela terra alentejana até que um dia seria enviado para a grande cidade a fim de estudar em Évora, no Colégio dos Jesuítas.
Os estudos seriam abruptamente interrompidos, quando António com apenas 18 anos tomou conhecimento do falecimento do pai, tendo então regressado à sua Vidigueira natal.
Não ficou por muito tempo! O país estava em plena Guerra da Restauração, opondo o reino de Portugal à vizinha Espanha e o jovem logo tratou de se alistar no Exército Português onde uma carreira promissora o esperava, não fossem os seus excessos, fruto de um temperamento impetuoso.
O despertar dos sentidos para as questões amorosas e para a poesia levaram-no a envolver-se nas mais diversas discussões e aventuras. Uma dessas acabou por correr mal obrigando-o em 1653 a fugir para o Brasil, quando tinha apenas 22 anos de idade. Ele ferira de morte, em duelo, um adversário.
Depois de ter passado três anos na Baía, o jovem alentejano regressou a Portugal e, embora sem ter alterado o seu modo de vida a leitura de um texto de Frei Luís de Granada despertou-lhe o interesse para os assuntos da fé e de Deus.
Já em terras lusas, quando corria o ano de 1656 António volta de novo a participar naquela interminável guerra que durou 28 anos (1640 a 1668). E, porque se tratava de um jovem de reconhecida coragem e valor, foi em Setúbal que viria a ser promovido à patente de capitão.
Mas, contava ele 31 anos de idade quando em maio de 1662, decide dar uma volta completa à sua vida repleta de aventuras e experiências. Abandonou a carreira militar para se dedicar à vida religiosa, ingressando na Ordem de São Francisco, em Évora.
A partir desse momento o então conceituado capitão António da Fonseca Soares despe o garboso uniforme militar e passa a envergar o hábito simples de frade franciscano, passando a assumir a identidade de Frei António das Chagas, ou Padre António da Fonseca, nomes porque ficaria conhecido entre o povo.
E foi precisamente graças às diligências de Frei António das Chagas, contando com o alto patrocínio do rei D. Pedro II, que no dia 27 de junho de 1682, em Brancanes, a noroeste de Setúbal, a meia encosta de uma pequena colina desta vila de pescadores e salineiros que seria lançada a primeira pedra para a construção do edifício do Seminário para Missionários Apostólicos de Nossa Senhora dos Anjos.
Rui Canas Gaspar

quarta-feira, 27 de julho de 2022

 

Para quando um monumento aos antigos combatentes das guerras coloniais erigido em Setúbal?


Pouco passava das oito da manhã quando o telefone tocou e do outro lado a inconfundível voz do meu velho amigo Ricardo Seromenho logo perguntou:

- É pá, tás bom? Sabes que dia é hoje?

- Quarta-feira, dia 27 de julho, respondi

- Faz hoje 52 que morreu o Salazar – Diz-me o Ricardo.

- Queres tu dizer que faz hoje 52 anos que partimos para a Guiné para a Guerra Colonial.

O Ricardo é melhor que os avisos do Facebook e faz questão de me telefonar para recordar datas marcantes da nossa vida rica em aventuras ocorridas na nossa juventude.

De facto nesta data este setubalense  embarcou com centenas de outros jovens e a bordo do navio Bragança rumo a Bissau, enquanto eu, no mesmo dia seguia o mesmo trajeto a bordo do navio de carga “Ana Mafalda” com mais um pequeno punhado de militares destacados para rendição individual de outros camaradas.

Com a morte do ditador ainda alimentamos esperança de que os barcos não seguissem para aquele território africano, porém nem isso obstou a que fosse cumprida a missão que nos destinaram e que levou a que muitos jovens por lá ficassem mortos ou de lá viessem com sequelas mais ou menos graves no corpo e na alma.

Passado mais de meio século ainda por cá andam muitos desses jovens a quem o governo de então obrigou a ir combater para terras distantes sem que volvido todo este tempo pouco ou nada a Nação tenha reconhecido o seu esforço e sacrifício.

Erigir um monumento aos setubalenses que foram obrigados a ir combater para terras de África, num local de destaque do concelho, seria o mínimo que se poderia fazer para honrar a memória daqueles que foram obrigados a deixar namoradas, esposas e mães, sendo que alguns destes nossos conterrâneos não voltaram de lá com vida.

Rui Canas Gaspar

Troineiro.blogspot.com

 


A sorte perseguia-me na Feira de Santiago 



Ainda criança e morando em Troino, bem perto da Avenida Luiza Todi, local onde então se realizava a Feira de Santiago certo dia decidi ir passear até ao popular recinto.

Ali chegado e depois de dar algumas voltas pelo espaço de terra batida abeirei-me de uma daquelas simpáticas barracas onde a troco de alguns centavos se puxava de um molhe, um cordelinho, de onde surgiria um número correspondente a um dos prémios expostos.

Eu não tinha dinheiro (coisa normal para aquela época) por isso abeirei-me de um adulto que se preparava para tentar a sorte e disse-lhe: Vai sair-lhe aquela Nossa Senhora de Fátima, uma estatueta de barro pintado.

O homem pagou, puxou o cordel e saiu-lhe mesmo a tal estatueta e tão estupefacto ficou que me ofereceu o prémio.

Anos mais tarde, já casado não poderia, como agora, faltar à Feira de Santiago.

As tais barraquinhas tinham evoluído e agora os prémios eram atribuídos onde a roleta parasse e, apontasse o número correspondente.

Por tradição, sempre que lá ia tentava a sorte comprando a rifa e todos os anos me saía prémio.

E, acreditem ou não, foi graças a essas rifas que consegui um triciclo para as crianças, uma caixa térmica, uma tábua de passar a ferro, um conjunto de panelas e sei lá que mais…

Deixei de comprar as rifas na altura em que olhava para os prémios e dizia para a minha esposa que não valia a pena porque já tínhamos aquelas coisas, imaginem!...

Acho que isto é herança de família porque já o meu avô materno, Artur Canas, lhe saiu numa rifa da feira um valioso relógio, uma peça comemorativa do centenário da conceituada fábrica de cerâmica Vista Alegre, o qual guardo como saudosa lembrança.

Rui Canas Gaspar

Troineiro.blogspot.com

2022-07-27

quarta-feira, 25 de maio de 2022

 

 


Relembrando o saudoso e único Francisco Finura

De cachimbo preso ao canto da boca e barba à “Popey”, vestido com o fato-macaco azul, donde sobressaía do bolso superior um vistoso e impecável lenço, imaculadamente branco, era assim que este setubalense de múltiplos talentos geralmente se apresentava em público.

Não é pois de admirar que graças à sua postura e popularidade tivesse despertado a atenção de famosos e talentosos fotógrafos e pintores setubalenses, nomeadamente Américo Ribeiro, Baptista, Maurício de Abreu e Rogério Chora, que tão bem captaram a sua imagem, a qual ficaria gravada para a posteridade graças a estes artistas.

Francisco Finura, geralmente fazia-se transportar pelas ruas de Setúbal numa singular bicicleta, fabricada por si, afirmando ser este o modelo mais adequado, porquanto considerava que “o bom ciclista devia pedalar com a perna esticada”.

O velocípede tinha um guiador alto, um travão ligado à roda traseira o que lhe permitia com mais facilidade fazer demonstrações de perícia sobre as duas rodas, podendo também andar para a frente e para trás, graças ao carreto preso.

De tronco direito, peito saliente, compleição atlética, com pronúncia onde o erre era bem vincado, a forma de falar tão característica dos setubalenses residentes naquela zona da cidade, “Finuras” não passava despercebido onde quer que estivesse e, entre a rapaziada daqueles bairros populares a sua figura exercia particular atração e admiração não só devido à distinta pose mas sobretudo às suas diversas atividades.

E que dizer de mais de uma centena de pessoas que salvou de morrerem afogadas? Trinta e uma delas foram oficialmente contabilizadas o que lhe valeu o reconhecimento e condecoração do Instituto de Socorros a Náufragos. Só de uma vez conseguiu salvar meia dúzia de pessoas ao largo da Praia de Albarquel e, com a ajuda de um remo, içá-las para bordo de um barco. “Parecia um cacho de uvas!...” comentou ele no início dos anos 70 do século XX, no decurso de uma entrevista ao programa televisivo “25 milhões de portugueses”.



sábado, 7 de maio de 2022

 



Um valioso prémio sorteado na Feira de Santiago 


Naquele ano de mil novecentos e vinte e qualquer coisa o jovem pescador setubalense Artur Canas, quando a noite refrescava, em Agosto, saiu de sua casa no Bairro de Troino e foi até à Feira de Santiago para se divertir um pouco.

Naquele tempo, na feira, para além das habituais diversões, existiam várias barracas onde os visitantes podiam comprar rifas na esperança de lhes sair algum interessante prémio.

Artur decidiu testar a sua sorte e, para seu espanto, ao desembrulhar o papelinho verificou que o número inscrito correspondia a um bom prémio.

Imagine-se que, numa altura em que não seriam muitos os pescadores que dispunham de relógio foi precisamente um que calhou em sorte a este setubalense. Porém, não se tratava de um relógio de pulso, mas sim de uma bela peça de cerâmica, com cerca de 15 cm de altura, em forma de casinha.

O pescador, bastante contente com a sua sorte, acabaria por levar o relógio para bordo do barco de pesca, onde lhe fez companhia ao longo de anos, até que os salpicos de água salgada danificaram a máquina tornando-a inoperacional.

Mas, porque a peça era bem bonita, mesmo sem a mesma funcionar, ficou a servir lá em casa como motivo decorativo.

Os anos passaram, Artur e sua esposa faleceram, a peça de cerâmica passou para a filha que também viria a falecer e esta lembrança acabaria por ficar ao seu neto Rui.

O curioso é que, bem visível, na base da peça está o símbolo da mais prestigiada fábrica de cerâmica portuguesa, a Vista Alegre e, como se isso não fosse suficiente ali está igualmente inscrito “centenário 1824 – 1924” ou seja uma rara peça comemorativa do primeiro centenário desta instituição que em breve fará 200 anos.

Era assim a Feira de Santiago, naqueles tempos em que eram colocadas para sorteio peças verdadeiramente interessantes e até valiosas ao invés dos peluches e plásticos com que hoje nos brindam.

Anos mais tarde calhar-me-ia a mim herdar a tradição de ser o feliz contemplado com diferentes prémios nas barracas de roleta na Feira de Santiago quando esta se realizava na Avenida Luísa Todi, e raro era a vez que comprava rifas e não me saíam prémios, mas nunca por lá vi algo de valor tão significativo como aquele prémio com que o meu avô Artur Canas foi bafejado.

Rui Canas Gaspar

Troineiro.blogspot.com